terça-feira, 11 de março de 2008

ENXERGANDO ALÉM DAS MARGENS

O necessário debate sobre o
desenvolvimento sustentável
no Semi-Árido Brasileiro

Por
Roberto Marinho Alves da Silva
Professor da Universidade Federal do Rio Grande do Norte cedido ao Ministério do Trabalho e Emprego

Nos últimos dias de 2007, o Brasil acompanhou as notícias da greve de fome do Bispo Dom Cappio contra a decisão do governo federal de dar início às obras de interligação do Rio São Francisco com outras bacias da Região Nordeste. A maior parte das reportagens concentrou-se na contagem dos dias de jejum, enfatizando a resistência e a debilidade do autor do protesto. Em alguns casos, as reportagens traziam informações sobre as características da polêmica obra de engenharia hidráulica para a região das secas. Afinal, era esse o debate: quem é contra ou a favor de solucionar o problema da seca, de levar água para o sofrido sertão nordestino. O debate terminava aí, numa única questão - a falta de água - e nas margens de um grande rio.
Terminada a greve, o assunto saiu quase que totalmente dos noticiários. Ao que nos parece, a atitude do bispo, apesar de contribuir para agregar forças políticas que estavam dispersas e de recolocar a questão do Rio São Francisco na mídia nacional, apareceu para a população como mais uma iniciativa pessoal, um ato heróico de doar a vida por uma causa. A forma como o drama foi conduzido não possibilitou dar a visibilidade necessária a um conjunto de forças sociais que, mesmo que ainda dispersa e ideologicamente diversas, estão construindo, experimentando e defendendo alternativas de desenvolvimento no Semi-Árido brasileiro.
Não houve chance de ir além, de explicitar que não se trata apenas da oposição a uma obra de engenharia ou de ser contra uma decisão governamental. A falta de debates mais amplos e a manipulação das informações prejudicou um posicionamento mais consciente e crítico da população sobre a questão de fundo naquele acontecimento: Qual o desenvolvimento que se quer para o Semi-Árido brasileiro?
Não se trata apenas de um conflito em torno de recursos hídricos. É a própria concepção de desenvolvimento do Semi-Árido que está em disputa na sociedade e tem seus reflexos no Estado. De um lado, existem forças sociais e políticas cuja compreensão da sustentabilidade do desenvolvimento continua subordinada à dimensão econômica. Nesse caso, as apostas para incentivar o desenvolvimento na região são, sobretudo, os grandes investimentos em infra-estrutura que possam viabilizar as atividades econômicas e que possam vir a produzir melhorias nos indicadores sociais. As prioridades são a revitalização da Bacia do Rio São Francisco, como base para a integração com outras bacias hidrográficas e para garantia da navegabilidade; a construção da ferrovia transnordestina; a agricultura irrigada, dinamizando o agronegócio; a mineração e a produção de energia (etanol, biodiesel etc.).
Por outro lado, existem organizações públicas estatais e da sociedade civil organizada que implementam um conjunto significativo de programas e ações orientados para a inclusão social, para a democratização do acesso à água, à terra, aos serviços públicos de qualidade, valorizando a cultura e identidade sertaneja e buscando a preservação dos recursos naturais do Bioma Caatinga.
Esse debate sobre as alternativas de desenvolvimento para o Semi-Árido vem sendo lentamente construído desde a primeira metade do século XX. Josué de Castro, Guimarães Duque, Celso Furtado, Manuel Correia de Andrade, Tânia Bacelar de Araújo, entre outros estudiosos e atores sociais e políticos que atuam naquela realidade, revelaram as principais distorções nas políticas públicas no Semi-Árido e sistematizaram propostas orientadas para a sustentabilidade. Mas o fato é que essas alternativas nunca foram suficientemente consideradas ou valorizadas. Quando isso aconteceu, como na primeira versão original da política da Sudene, ainda sob o comando de Celso Furtado, a ditadura militar interrompeu abruptamente o processo, restituindo a ordem às oligarquias sertanejas e o progresso às modernas empresas rurais.
Além dos interesses políticos e econômicos, prevalece uma espécie de miopia técnica no tratamento das questões daquela região. As políticas públicas foram e, pelo menos em parte, ainda estão sendo orientadas por essa perspectiva de que é necessário e possível “combater a seca e os seus efeitos”. Prevalece a negação daquele ambiente, a convicção de que é preciso modificá-lo profundamente para poder viabilizar o desenvolvimento. Geralmente, essas políticas são orientadas para as soluções de engenharia hidráulica a fim de viabilizar as atividades econômicas, tornando-as rentáveis e atraentes ao capital, colocando as necessidades da população local apenas como justificativa.
Pode-se verificar na história, que desde a segunda metade do Século XIX, a maior parte das obras de armazenamento de água tinha por intenção e prioridade viabilizar a atividade pecuária concentrada nas grandes fazendas de gado. No século XX, as grandes obras hídricas serviram, sobretudo, para a geração de energia e para viabilizar a agricultura irrigada. Somente nos últimos anos, é que estão sendo valorizadas as obras de distribuição de água armazenada e da interligação de alguns desses grandes reservatórios por meio de adutoras e de canais. A maior parte da população do Semi-Árido continua sofrendo com a escassez de água e sem o apoio necessário para desenvolver atividades socioeconômicas ambientalmente sustentáveis. Em 2007, os carros-pipas foram de novo acionados para socorrer da sede milhares de pessoas.
Mas há algo de novo acontecendo nessas últimas duas décadas: é a recuperação e apropriação do debate sobre a necessidade de uma mudança profunda na forma de intervenção pública no Semi-Árido brasileiro. Desta vez, a iniciativa é de um conjunto significativo de organizações da sociedade civil, junto com instituições de pesquisa e com outras forças políticas que atuam naquela região. Agora há maior clareza sobre a necessidade urgente de mudança de perspectiva nas políticas públicas no Semi-Árido. A isso chamamos de transição paradigmática entre o “combate à seca” e a “convivência com o Semi-Árido”. O debate é calcado em fortes alicerces de experimentações e vivências de alternativas (socioeconômicas, tecnológicas, políticas e culturais) que já dão certo porque são apropriadas àquela realidade.
Hoje, existem centenas de tecnologias apropriadas que foram e estão sendo desenvolvidas e implementadas sob essa perspectiva da convivência. São perceptíveis os avanços relacionados às tecnologias hídricas apropriadas ao Semi-Árido, fundamentadas no reconhecimento das múltiplas necessidades de abastecimento hídrico. As cisternas de placas para abastecimento de água das famílias, nas comunidades rurais, é apenas uma delas. Além das alternativas tecnológicas, a educação ambiental e a gestão comunitária são fundamentais para garantir o uso sustentável da água, possibilitando o abastecimento humano e a produção apropriada, sem degradar os mananciais hídricos da superfície e os aqüíferos subterrâneos.
Na produção, existem conhecimentos acumulados nos centros públicos de pesquisa e em organizações de fomento à agroecologia que orientam o desenvolvimento de tecnologias apropriadas àquela realidade, considerando suas potencialidades e fragilidades ambientais. Em grande parte, trata-se de um resgate e valorização daquilo que Guimarães Duque afirmava e ensinava aos agricultores sertanejos há mais de sessenta anos: os sistemas de policultura são preferíveis às práticas monocultoras, pois a combinação de cultivos é um dos segredos da convivência, incluindo o replantio de árvores resistentes à seca, o aproveitamento das forrageiras rasteiras, as lavouras de chuva, a irrigação apropriada e o extrativismo sustentável. A combinação dessas diferentes atividades em sistemas múltiplos que viabilizem a diversificação das fontes de obtenção de renda, evita a dependência em relação à regularidade das chuvas na região.
As mudanças climáticas e os riscos de desertificação impõem, hoje, algumas verdades afirmadas há muito tempo: o manejo sustentado da Caatinga exige mudanças na matriz energética e nas práticas agrícolas irrigadas e de sequeiro, reduzindo o desmatamento, principalmente nas regiões que sofrem processos de desertificação. Nessas áreas, é preciso controlar a retirada da vegetação e reflorestar a caatinga, evitando que o solo fique totalmente exposto às enxurradas no inverno e à ação dos ventos nos períodos mais secos. Nos cultivos agrícolas, deverão ser consideradas, entre outras, a consorciação e a rotação de culturas, considerando as práticas de manejo sustentado do solo e da água, incluindo os métodos de irrigação apropriados à realidade regional e às condições da agricultura familiar.
A pequena irrigação deve ser valorizada, em primeiro lugar, na perspectiva da segurança alimentar da população do Semi-Árido, reduzindo os custos com aquisição de alimentos de primeira necessidade. Outras possibilidades são as atividades baseadas no extrativismo vegetal, aproveitando a riqueza de plantas adaptadas ao ambiente seco que poderiam ser economicamente exploradas como produtoras de óleos (Catolé, Faveleira, Marmeleiro, Oiticica e Mamona); de látex (Pinhão e Maniçoba); de ceras (Carnaúba); de fibras (Bromeliáceas, Sisal e Agave); medicinais (Babosa e Juazeiro); frutíferas (Imbuzeiro e Cajueiro).
Em relação à pecuária também é possível perceber algumas mudanças paradigmáticas. No século XVII, o espaço territorial do Semi-Árido começou a ser violentamente ocupado pelos colonizadores com base na pecuária bovina extensiva nos grandes latifúndios. Hoje, as perdas irreparáveis no Bioma Caatinga ampliam e potencializam, nos períodos de estiagem, as crises econômicas da pecuária bovina, conduzindo a uma clara evidência de que a criação de pequenos animais deve ser a preferida na região. O volume de suporte forrageiro e de água, requerido para a manutenção dos pequenos animais, é significativamente menor em relação às exigências da bovinocultura.
Há também uma redescoberta de que o pasto natural da Caatinga é rico em nutrientes, dada a grande diversidade e o valor forrageiro de espécies resistentes às estiagens anuais. A escassez de pastagem nos períodos de seca pode ser enfrentada com as alternativas de fenação e silagem, com base na compreensão de que a segurança alimentar e hídrica dos rebanhos são de fundamental importância na região. Ademais, o adubo produzido pelos animais tem valor estratégico para melhorar a absorção de água da chuva no solo, aumentando a sua fertilidade para a produção agrícola.
Em síntese, a sustentabilidade do desenvolvimento do Semi-Árido requer outros valores e outros padrões de produção como as alternativas baseadas na agroecologia, no manejo sustentável da Caatinga, na criação de pequenos animais e nos projetos associativos e cooperativos de economia solidária. Além de sustentáveis, as iniciativas de produção e distribuição das riquezas devem ser includentes, com a democratização do acesso à terra, à água, ao crédito, aos conhecimentos e tecnologias apropriadas, à assistência técnica e organizativa. Sem essa perspectiva solidária também não haverá sustentabilidade.
É esse o debate que deve ser feito. Ele ajuda a enxergar para além das margens do grande rio.

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