sábado, 28 de março de 2009

Bispos Franceses Falam sobre Excomunhão em Recife

Seguem 4 documentos assinados por bispos católicos de dioceses francesas. Em todas eles, respeito e solidariedade para com mãe e filha. Eis posições mais conforme o Evangelho, expostas por membros da hierarquia da Igreja. Ademir Costa

Documento 1

Carta aberta de Dom Daucourt, bispo de Nanterre, a Dom Sobrinho, arcebispo de Olinda e Recife

Dom Gérard Daucourt, bispo de Nanterre, na França, publicou uma carta aberta a Dom José Cardoso Sobrinho, arcebispo de Olinda e Recife, que excomungou a mãe de uma menina de nove anos, grávida de gêmeos por causa de um estupro, e os médicos que realizaram o seu aborto. Segundo Dom Daucourt, Dom Sobrinho "acrescentou dor acima de dor e provocou sofrimento e escândalo em muitas pessoas em todo o mundo".
O texto foi publicado no sítio La Croix.com, 12-03-2009. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

* * * * *

Monsenhor,
Recentemente, o senhor quis declarar publicamente a excomunhão de uma mãe de família. Que tinha feito a sua filha de nove anos, grávida de quatro meses, abortar depois de ter sido estuprada desde os seis anos pelo seu padrasto. O senhor também decidiu publicamente a excomunhão dos médicos que realizaram esse aborto. Reajo publicamente à sua intervenção com esta carta aberta.

Asseguro-lhe desde já: para mim, o aborto é a supressão de uma vida. Sou, portanto, firmemente contrário a ele.

A mãe dessa menina talvez pensou que fosse melhor salvar uma vida do que arriscar a perder três... Talvez, os médicos lhe haviam dito que um pequeno útero de nove anos não se dilata infinitamente... Eu não sei. O que sei é que, nessa tragédia, o senhor acrescentou dor acima de dor e provocou sofrimento e escândalo em muitas pessoas em todo o mundo.

Em uma situação tão dramática, eu acredito firmemente que nós, bispos, pastores na Igreja, devemos, sobretudo, manifestar a bondade de Jesus Cristo, o único e verdadeiro Bom Pastor. Estou certo que o senhor ama essa mãe e que busca homens e mulheres que possam ajudá-la a prosseguir o caminho, sentindo-se amparada em amizade, espiritual e, se necessário, materialmente.

Estou certo de que o senhor quer dar amor a essa menina, marcada para a vida, e à irmã mais velha, deficiente, também ela estuprada. Estou certo que o senhor pediu à administração da prisão para se aproximar do padrasto estuprador para que ele se arrependa, se converta e volte a ser um dia um homem autêntico. Estou certo de que Cristo estima que, se for possível, o senhor fale com os médicos que realizaram esse aborto para que, como os 40 ginecologistas e obstetras que eu encontrei há alguns meses e com os quais não compartilhava todas as posições, a maior parte deles aprecia ser escutado e ouvir pontos de vista diferentes, já que muitas vezes vivem dramas de consciência.

Monsenhor, ajudemo-nos uns aos outros para ser, antes de tudo, homens de esperança em Deus e em todo ser humano!

Tenho relações de amizade e de colaboração com muitos evangélicos que são contrários, como o senhor e eu, ao aborto. Mas não proclamam condenações públicas. Talvez, é uma das razões pelas quais as comunidades evangélicas atraem hoje tantos católicos, particularmente no Brasil. Constato que a opinião pública não entende nada de excomunhão. Ela a percebe como uma condenação das pessoas e não uma proposta de cura e de conversão.

Considero que devemos encontrar outros meios para dizer às nossas comunidades que o comportamento ou as palavras de certos católicos não estão de acordo com o que a Igreja pretende e crê que seja a vontade de Deus.

Não lhe escondo nem que me pergunto também como se pode dizer que o estupro é menos grave do que o aborto que suprime a vida no ventre de uma mãe. Mulheres estupradas se confiaram a mim. Algumas puderam resolver-se e avançar na vida com a lembrança das suas feridas que nunca desaparece completamente. Mas outras, mesmo estando vivas fisicamente, foram mortas no mais profundo do seu ser e não conseguem mais viver. A vida não é apenas física, o senhor bem o sabe.

Não pude obter o texto completo do que o Cardeal Re disse, mas o apoio que – segundo a imprensa – ele lhe deu não muda em nada a minha reação pastoral. Para a clareza das relações entre bispos, envio uma cópia desta carta ao Cardeal Re.

Saúdo-lhe com tristeza, mas também com sentimentos respeitosamente fraternos, assegurando-lhe a minha oração pelo senhor e por aqueles que, de qualquer maneira, foram implicados no drama dessa menina.

Gérard Daucourt
Bispo de Nanterre, França
http://www.unisinos.br/ihu/index.php?option=com_noticias&Itemid=18&task=detalhe&id=20663

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Documento 2
Excomunhão. Francis Deniau, bispo de la Nièvre, França, critica arcebispo brasileiro.

"Eu devo dizer ao meu irmão, o bispo de Recife – e ao cardeal que o apoiou – que eu não entendo sua intervenção. Diante de tal drama, diante da ferida de uma criança violada e incapaz, mesmo fisicamente, de levar a termo uma gravidez, havia outra coisa a dizer, e, sobretudo questões a se colocar: como acompanhar, encorajar, permitir sair do horror, reencontrar seu gosto pela vida? Como ajudar a filha e a mãe a se reconstruir?", escreve Francis Deniau, bispo de la Nièvre, França, em artigo que repercutiu internacionalmente.

Eis o artigo.

Fiquei sabendo, como todo o mundo, que a mãe de uma filha de nove anos, grávida de seu padrasto, tinha sido excomungada por seu bispo no Brasil, junto com a equipe médica que procedera ao abortamento de sua filha. Como bispo, eu sou solidário de todos os bispos do mundo. A solidariedade impõe dizer os desacordos pessoais, senão ela não seria cumplicidade. Eu devo dizer ao meu irmão, o bispo de Recife – e ao cardeal que o apoiou – que eu não entendo sua intervenção. Diante de tal drama, diante da ferida de uma criança violada e incapaz, mesmo fisicamente, de levar a termo uma gravidez, havia outra coisa a dizer, e, sobretudo questões a se colocar: como acompanhar, encorajar, permitir sair do horror, reencontrar seu gosto pela vida? Como ajudar a filha e a mãe a se reconstruir? Nós balbuciamos, sobretudo nós homens, e devemos contar com as mulheres para estar lá com mais presença do que com palavras. Mas, palavras de condenação, um apelo à lei, por mais justa que seja: isto é o que não se deve fazer.

Jesus teria dito que a moral é feita para o homem e não o homem para a moral. Ele denunciou a hipocrisia daqueles que impõem pesados fardos sobre os ombros dos outros.

Eu confesso que acompanhei mulheres antes e após uma IVG. Eu creio que a Igreja católica assume sua responsabilidade social insistindo, a tempo e contratempo, no respeito à vida humana “desde a concepção até a morte natural”. Nós faltaríamos à nossa responsabilidade calando tal apelo, que expressa a defesa dos mais pequenos e mais frágeis. Depois disso, trata-se de acompanhar cada pessoa, em situações em que eu não gostaria de estar, e onde cada qual procura fazer o melhor que ele ou ela pode. Deus nos chama a decisões que podem ser exigentes, mas antes ele nos envolve com sua ternura, e ele nos acolhe nas obscuridades e nos dramas da vida. Eu espero dos homens de Igreja, meus irmãos, que eles não utilizem seu nome para condenar pessoas ou encerrá-las em sua culpabilidade.

Francis Deniau, bispo de la Nièvre

http://unisinos.br/ihu/index.php?option=com_noticias&Itemid=18&task=detalhe&id=20631

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Documento 3

Comunicado de Dom Norbert Turini
Cahors, quarta-feira 11 março de 2009
Fonte : site da diocese de Cahors (França)

Após uma série de numerosas reações a respeito da menina brasileira de 9 anos, do aborto por que passou e da excomunhão que seguiu, D. Turini dá seu ponto de vista.

"Uma menina brasileira de nove anos violentada e grávida de gêmeos, uma mãe atormentada, uma condenação, e uma « excomunhão » ! A opinião pública reagiu, e eu compreendo sua emoção. Por que não guardar o silêncio diante de tal tragédia ?

Por que acrescentar severidade a tanto sofrimento ? Muitas pessoa se questionam sobre isso. Defendo e defenderei sempre a dignidade e o respeito à vida desde sua origem até o seu termo, e creio que em todas as circunstâncias a atitude da Igreja deve tirar sua legitimidade da atitude do Cristo. Assim sendo, o amor e a misericórdia devem sempre falar mais forte, conforme os evangelhos, do que a condenação e a exclusão. Basta abrir os evangelhos para se convencer disso !

Qual será o futuro dessa mulher, dessa menininha, após tal decisão [ a excomunhão lançada] ? Quem vai acompnhá-las ? Em consciência e por fidelidade à Boa Nova devemos nos interrogar a respeito. Por ora, gostaria de dizer a essa mulher e à sua filha que elas são e sempre serão amadas pelo Deus de Jesus Cristo que nós chamamos de Pai Nosso.

+Norbert TURINI, bispo de Cahors

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DOCUMENTO N. 4

Comunicado da Missão de França
Paris, quarta-feira 11 de março de 2009
Fonte : Missão de França

O bispo da Missão de França e seu Conselho associam-se aos protestos de numerosos católicos contra a decisão do arcebispo de Recife, no Brasil, de excomungar uma mãe e dos médicos que tomaram a decisão pelo aborto de uma menininha de 9 anos violentada por seu padrasto.

É certo que o aborto é um ato mortífero ; ele inscreve na carne da quelas que por ele passaram ferimentos que talvez nunca terminem. Mas como é que se pode, diante de tal drama, a Igreja se manifeste para julgar e condenar, e não para manifestar sua compaixão e ajudar as pessoas envolvidas a se reconduzirem para a vida ? Como e por que ignorar a prática pastoral da Igreja católica que é a de ouvir as pessoas em dificuldade, de acompanhá-las e, em matéria de moral. de levar em conta « o mal menor », particularmente em situações dramáticas e em casos extremos ? Quando se invoca a « lei de Deus», como esquecer a ternura de Jesus : « sede misericordiosos como vosso Pai é misericordioso » ? Essa decisão abrupta de excomungar é inaceitável.

Ela não leva em conta nem o drama vivido nem o risco físico e moral que a menina estava correndo. Queremos dizer com todas as nossa forças, neste mundo tão sofrido, que é preciso que façamos surgir atitudes de esperança, em vez de se fechar em condenações que são traições dos caminhos compassivos do amor misericordioso.

A todos os que estão perturbados por tal medida [de excomunhão], queremos dizer com firmeza que não nos reconhecemos nela, e requeremos que ela seja suprimida o mais rapidamente possível.

Dom Yves Patenôtre, bispo da Missão de França e seu Conselho.

quinta-feira, 26 de março de 2009

Hoje não tenho mais esses sonhos, diz o cardeal

Dom Pedro Casaldáliga*

O cardeal Carlo M. Martini, jesuíta, biblista, arcebispo que foi de Milan e colega meu de Parkinson, é um eclesiástico de diálogo, de acolhida, de renovação a fundo, tanto na Igreja como na Sociedade. Em seu livro de confidências e confissões Colóquios noturnos em Jerusalém, declara: Antes eu tinha sonhos acerca da Igreja. Sonhava com uma Igreja que percorre seu caminho na pobreza e na humildade, que não depende dos poderes deste mundo; na qual se extirpasse pela raiz a desconfiança; que desse espaço às pessoas que pensam com mais amplidão; que desse ânimos, especialmente, àqueles que se sentem pequenos ou pecadores. Sonhava com uma Igreja jovem. Hoje não tenho mais esses sonhos. Esta afirmação categórica de Martini não é, não pode ser, uma declaração de fracasso, de decepção eclesial, de renúncia à utopia. Martini continua sonhando nada menos que com o Reino, que é a utopia das utopias, um sonho do próprio Deus.

Ele e milhões de pessoas na Igreja sonhamos com a “outra Igreja possível”, ao serviço do “outro Mundo possível”. E o cardeal Martini é uma boa testemunha e um bom guia nesse caminho alternativo; o tem demonstrado.

Tanto na Igreja (na Igreja de Jesus que são várias Igrejas) como na Sociedade (que são vários povos, várias culturas, vários processos históricos) hoje mais do que nunca devemos radicalizar na procura da justiça e da paz, da dignidade humana e da igualdade na alteridade, do verdadeiro progresso dentro da ecologia profunda. E, como diz Bobbio, “é preciso instalar a liberdade no coração mesmo da igualdade”; hoje com uma visão e uma ação estritamente mundiais. É a outra globalização, a que reivindicam nossos pensadores, nossos militantes, nossos mártires, nossos famintos...

A grande crise econômica atual é uma crise global de Humanidade que não se resolverá com nenhum tipo de capitalismo, porque não é possível um capitalismo humano; o capitalismo continua a ser homicida, ecocida, suicida. Não há modo de servir simultaneamente ao deus dos bancos e ao Deus da Vida, conjugar a prepotência e a usura com a convivência fraterna. A questão axial é: trata-se de salvar o Sistema ou se trata de salvar a Humanidade? A grandes crises, grandes oportunidades. No idioma chinês a palavra crise se desdobra em dois sentidos: crise como perigo, crise como oportunidade.

Na campanha eleitoral dos EUA se arvorou repetidamente “o sonho de Luther King”, querendo atualizar esse sonho; e, por ocasião dos 50 anos da convocatória do Vaticano II, tem-se recordado, com saudade, o Pacto das Catacumbas da Igreja serva e pobre. No dia 16 de novembro de 1965, poucos dias antes da clausura do Concílio, 40 Padres Conciliares celebraram a Eucaristia nas catacumbas romanas de Domitila, e firmaram o Pacto das Catacumbas. Dom Hélder Câmara, cujo centenário de nascimento estamos celebrando neste ano, era um dos principais animadores do grupo profético. O Pacto em seus 13 pontos insiste na pobreza evangélica da Igreja, sem títulos honoríficos, sem privilégios e sem ostentações mundanas; insiste na colegialidade e na corresponsabilidade da Igreja como Povo de Deus e na abertura ao mundo e na acolhida fraterna.

Hoje, nós, na convulsa conjuntura atual, professamos a vigência de muitos sonhos, sociais, políticos, eclesiais, aos quais de jeito nenhum podemos renunciar. Seguimos rechaçando o capitalismo neoliberal, o neoimperialismo do dinheiro e das armas, uma economia de mercado e de consumismo que sepulta na pobreza e na fome uma grande maioria da Humanidade. E seguiremos rechaçando toda discriminação por motivos de gênero, de cultura, de raça. Exigimos a transformação substancial dos organismos mundiais (a ONU, o FMI, o Banco Mundial, a OMC...). Comprometemo-nos a viver uma “ecologia profunda e integral”, propiciando uma política agrário-agrícola alternativa à política depredadora do latifúndio, da monocultura, do agrotóxico. Participaremos nas transformações sociais, políticas e econômicas, para uma democracia de “alta intensidade”.

Como Igreja queremos viver, à luz do Evangelho, a paixão obsessiva de Jesus, o Reino. Queremos ser Igreja da opção pelos pobres, comunidade ecumênica e macroecumênica também. O Deus em quem acreditamos, o Abbá de Jesus, não pode ser de jeito nenhum causa de fundamentalismos, de exclusões, de inclusões absorventes, de orgulho proselitista. Chega de fazermos do nosso Deus o único Deus verdadeiro. “Meu Deus, me deixa ver a Deus?”. Com todo respeito pela opinião do Papa Bento XVI, o diálogo interreligioso não somente é possível, é necessário. Faremos da corresponsabilidade eclesial a expressão legítima de uma fé adulta. Exigiremos, corrigindo séculos de discriminação, a plena igualdade da mulher na vida e nos ministérios da Igreja. Estimularemos a liberdade e o serviço reconhecido de nossos teólogos e teólogas. A Igreja será uma rede de comunidades orantes, servidoras, proféticas, testemunhas da Boa Nova: uma Boa Nova de vida, de liberdade, de comunhão feliz. Uma Boa Nova de misericórdia, de acolhida, de perdão, de ternura, samaritana à beira de todos os caminhos da Humanidade. Seguiremos fazendo que se viva na prática eclesial a advertência de Jesus: “Não será assim entre vocês” (Mt 21,26). Seja a autoridade serviço. O Vaticano deixará de ser Estado e o Papa não será mais chefe de Estado. A Cúria terá de ser profundamente reformada e as Igrejas locais cultivarão a inculturação do Evangelho e a ministerialidade compartilhada. A Igreja se comprometerá, sem medo, sem evasões, com as grandes causas de justiça e da paz, dos direitos humanos e da igualdade reconhecida de todos os povos. Será profecia de anúncio, de denúncia, de consolação. A política vivida por todos os cristãos e cristãs será aquela “expressão mais alta do amor fraterno” (Pio XI).

Nós nos negamos a renunciar a estes sonhos mesmo quando possam parecer quimera. «Ainda cantamos, ainda sonhamos». Nós nos atemos à palavra de Jesus: “Fogo vim trazer à Terra; e que mais posso querer senão que arda” (Lc 12,49). Com humildade e coragem, no seguimento de Jesus, tentaremos viver estes sonhos no dia a dia de nossas vidas. Seguirá havendo crises e a Humanidade, com suas religiões e suas Igrejas, seguirá sendo santa e pecadora. Mas não faltarão as campanhas universais de solidariedade, os Fóruns Sociais, a Via Campesina, os movimentos populares, as conquistas dos Sem Terra, os pactos ecológicos, os caminhos alternativos da Nossa América, as Comunidades Eclesiais de Base, os processos de reconciliação entre o Shalom e o Salam, as vitórias indígenas e afras e, em todo o caso, mais uma vez e sempre, “eu me atenho ao dito: a Esperança”.

Cada um e cada uma a quem possa chegar esta circular fraterna, em comunhão de fé religiosa ou de paixão humana, receba um abraço do tamanho destes sonhos. Os velhos ainda temos visões, diz a Bíblia (Jl 3,1). Li nestes dias esta definição: “A velhice é uma espécie de pós-guerra”; não precisamente de claudicação. O Parkinson é apenas um percalço do caminho e seguimos Reino adentro.

* Catalão de Barcelona, onde nasceu em 1928, a 16 de fevereiro, Casaldáliga ingressou na Ordem Claretiana, consagrada às missões. Foi ordenado sacerdote em 1943. Impregnado da espiritualidade dos Cursilhos de Cristandade, veio para o Brasil e, em 1968, mergulhou na Amazônia. Em 1971, nomearam-no bispo de uma prelazia amazônica, à beira do suntuoso rio Araguaia: São Félix do Araguaia. Adotou como lema que haveria de nortear literalmente sua atividade pastoral: "Nada possuir, nada carregar, nada pedir, nada calar e, sobretudo, nada matar". No dedo, como insígnia episcopal, um anel de tucum, que se tornou símbolo da espiritualidade dos adeptos da Teologia da Libertação.
Fonte: www.anote.org.br [26/03/2009]

sábado, 21 de março de 2009

O viver melhor ou o bem viver?

Leonardo Boff
Teólogo

Na ideologia dominante, todo mundo quer viver melhor e desfrutar de uma melhor qualidade de vida. Comumente associa esta qualidade de vida ao Produto Interno Bruto de cada pais. O PIB representa todas as riquezas materiais que um pais produz. Se este é o critério, então o países melhor colocados são os Estados Unidos, seguidos do Japão, Alemanha, Suecia e outros. Este PIB é uma medida inventada pelo capitalismo para estimular a produção crescente de bens materiais a serem consumidos.

Nos últimos anos, dado o crescimento da pobreza e da urbanização favelizada do mundo e até por um senso de decência, a ONU introduziu a categoria IDH, o “Índice de Desenvolvimento Humano”. Nele se elencam valores intangíveis como saúde, educação, igualdade social, cuidado para com a natureza, equidade de gênero e outros. Enriqueceu o sentido de “qualidade de vida” que era entendido de forma muito materialista: goza de boa qualidade de vida quem mais e melhor consome.
Consoante o IDH a pequena Cuba apresenta-se melhor situada que os EUA, embora com um PIB comparativamente ínfimo.

Acima de todos os paises está o Butão, esprimido entre a China e Índia aos pés do Himalaia, muito pobre materialmente mas que estatuiu oficialmente o “Indice de Felicidade Interna Bruta”. Este não é medido por critérios quantitativos mas qualitativos, como boa governança das autoridades, eqüitativa distribuição dos excedentes da agricultura de subsistência, da extração vegetal e da venda de energia para a Índia, boa saúde e educação e especialmente bom nível de cooperação de todos para garantir a paz social.

Nas tradições indígenas de Abya Yala, nome para o nosso Continente indioamericano ao invés de “viver melhor” se fala em “bem viver”. Esta categoria entrou nas constituições da Bolívia e do Equador como o objetivo social a ser perseguido pelo Estado e por toda a sociedade.

O “viver melhor” supõe uma ética do progresso ilimitado e nos incita a uma competição com os outros para criar mais e mais condições para “viver melhor”. Entretanto para que alguns pudessem “viver melhor” milhões e milhões têm e tiveram que “viver mal”. É a contradição capitalista.

Contrariamente, o “bem viver” visa a uma ética da suficiência para toda a comunidade e não apenas para o indivíduo. O “bem viver” supõe uma visão holística e integradora do ser humano inserido na grande comunidade terrenal que inclui além do ser humano, o ar, a água, os solos, as montanhas, as árvores e os animais; é estar em profunda comunhão com a Pacha Mama (Terra), com as energias do universo e com Deus.

A preocupação central não é acumular. De mais a mais, a Mãe Terra nos fornece tudo que precisamos. Nosso trabalho supre o que ele não nos pode dar ou a ajudamos a produzir o suficiente e decente para todos, também para os animais e as plantas. “Bem viver” é estar em permanente harmonia com o todo, celebrando os ritos sagrados que continuiamente renovam a conexão cósmica e com Deus.

O “bem viver” nos convida a não consumir mais do que o ecossistema pode suportar, a evitar a produção de resíduos que não podemos absorver com segurança e nos incita a reutilizar e reciclar tudo o que tivermos usado. Será um consumo reciclável e frugal. Então não haverá escassez.

Nesta época de busca de novos caminhos para a humanidade a idéia do “bem viver” tem muito a nos ensinar.

II SEMINÁRIO BRASILEIRO CONTRA O RACISMO AMBIENTAL

Chamamos de Racismo Ambiental às injustiças sociais e ambientais que recaem de forma implacável sobre grupos étnicos vulneráveis e outras comunidades, discriminadas por sua origem ou cor. (Tânia Pacheco [1])

O debate sobre Racismo Ambiental no Brasil emerge a partir do acirramento dos conflitos socioambientais gerados pelas políticas de desenvolvimento econômico hegemônicas, em nosso País e no mundo. Os movimentos sociais, organizações da sociedade civil, críticos e intelectuais denunciam que tal modelo de desenvolvimento tem historicamente se baseado na sobreexploração dos bens ambientais e de grupos sociais considerados inferiores. É o caso das populações pobres dos centros urbanos, das populações negras, dos povos indígenas, de ribeirinhos, pescadores, quilombolas e outras comunidades cujos modos de vida e trabalho estão diretamente associados aos ambientes naturais, sobre os quais são moldadas suas culturas, tradições e demais dimensões de suas próprias existências.

Os impactos provocados pelas formas de ocupação do nosso território, marcados por grandes projetos econômicos como a siderurgia, as monoculturas, a carcinicultura, as barragens, as hidrelétricas e termelétricas, e o turismo predador, dentre outros, colocam em risco a continuidade do planeta e a soberania dos povos. Em nome da ganância, de uma acumulação centralizadora e concentradora de riquezas, produze-se e agrava-se cada vez mais a pobreza e as desigualdades no mundo.

É nesse contexto que, sob o tema Racismo Ambiental - disputa pelo território e capitalismo: desenvolvimento para quê e para quem, o Grupo de Trabalho (GT) de Combate ao Racismo Ambiental, criado na Rede Brasileira de Justiça Ambiental em 2005, realizará nos próximos dias 23 a 25 de março o II Seminário Brasileiro contra o Racismo Ambiental. Os dois primeiros dias serão sediados em Fortaleza, na Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará, e o terceiro no município de São Gonçalo do Amarante, na comunidade do Povo Indígena Anacé, que vivencia múltiplos conflitos com a instalação e o incremento do Complexo Industrial Portuário do Pecém.

Na programação ganharão destaque os debates sobre disputa pelo território e os conflitos socioambientais no Brasil, incluindo os conflitos urbanos; os desafios para os sujeitos sociais no enfrentamento do Racismo Ambiental, e as estratégias de resistência da sociedade civil organizada. Participam do Seminário representantes de povos indígenas, quilombolas, pescadores artesanais, ribeirinhos, comunidades urbanas, além de várias outras organizações, movimentos sociais e universidades de todas as regiões do Brasil.

Essa reunião de diferentes sujeitos é uma estratégia utilizada pelo GT de Combate ao Racismo Ambiental desde o início de sua atuação. Assim, o II SBCRA terá como característica dar continuidade e ampliar as articulações, diálogos estratégicos e parcerias entre comunidades atingidas pelo Racismo Ambiental, movimentos sociais, organizações não-governamentais, acadêmicos e pesquisadores, como vem acontecendo desde o I Seminário, realizado em 2005, na Universidade Federal Fluminense, em Niterói, Rio de Janeiro. Além de dar visibilidade ao tema, a idéia envolve ainda promover trocas de saberes, conhecimentos e experiências de resistências às injustiças socioambientais, incentivando estudantes, educadores e lideranças de movimentos sociais a desenvolverem ações, estudos e pesquisas sobre o tema central do Seminário.

Entre os principais palestrantes e debatedores de outros estados presentes ao II Seminário, destacamos José Augusto Laranjeiras Sampaio, antropólogo e coordenador executivo da Anaí - Associação Nacional de Ação Indigenista; Crispim Santos, quilombola de Santo Francisco do Paraguaçu, Bahia (sob ameaça de morte por sua luta); Maria José Honorato, da Comissão Pastoral da Pesca da Bahia. E ainda: Álvaro de Angelis, de Goiás; Norma Felicidade Lopes da Silva Valencio, da Universidade Federal de São Carlos; Nahyda Franca e Itamar Silva, da ONG Ibase, do Rio de Janeiro; Kika Bessen, ativista do Movimento Negro de Cidade Tiradentes, São Paulo; José Cardoso, Articulador do Movimento Nacional dos Catadores de Materiais Recicláveis; Zoraide Vilasboas, que luta contra a poluição por minério de urânio em Caetité, Bahia; Ricardo Álvares, do Grupo de Trabalho sobre Regularização de Territórios Quilombolas de Minas Gerais; Judith Vieira, representante da ONG Terra de Direitos no Pará; Marizélia Lopes, Nega, da Ilha da Maré; Mayron Régis, do Fórum Carajás; e Angelina de Carvalho Pereira, do Movimento de Mulheres Camponesas, do Rio Grande do Sul.

Os conflitos causados por Racismo Ambiental no Ceará serão denunciados entre outros pelo Professor Jeovah Meireles (da UFC), por Meire Coelho e Francisca Sena (INEGRA), João do Cumbe (REALCE), Ceiça Pitaguary (APOINME - Articulação dos Povos Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo), Ireuda Ferreira Tavares (Comunidade de Novo Maracanaú), Soraya Vanini (Frente Cearense por uma Nova Cultura da Água), Jefferson Souza (Rede Tucum de Turismo Comunitário), Preto Zezé (CUFA), Cláudio Silva Filho (RENAP), Ana Maria Félix (Assentamento Maceió) e Arnaldo Fernandes (Frente Popular Ecológica de Fortaleza).

Nessa segunda versão, o encontro está sendo organizado pelas entidades que até o momento compõem o GT de Combate ao Racismo Ambiental no Ceará: Núcleo Tramas e Departamento de Geografia, ambos da UFC; Instituto Terramar; Central Única das Favelas; e Fórum em Defesa da Zona Costeira do Ceará. Outra particularidade deste II Seminário BCRA é que ele ocorrerá de forma articulada com o III Encontro da Rede Brasileira de Justiça Ambiental, que será realizado no período de 26 a 28 de março no SESC Iparana, no município de Caucaia.

Contatos: Cristiane Faustino – (85) 88377665
Luciana Nóbrega – (85) 88521420
Luciana Queiroz – (85) 86504880

[1] Coordenadora do GT de Combate ao Racismo Ambiental/RBJA.