quarta-feira, 26 de dezembro de 2007

SOBRE DOM ALOÍSIO LORSCHEIDER: DEFENSOR DOS POBRES

Trabalhei na Sala de Imprensa da Arquidiocese de Fortaleza de 1974 a 1979. Muito jovem, eu era consciente da ditadura militar e tinha pressa. Considerava D. Aloísio lento e muito conciliador. Tempos depois eu me daria conta do gigante de quem tive a honra de ser colaborador, embora um dos mais insignificantes.

Depois do meu, o depoimento de Leonardo Sampaio. Veja abaixo.

Por
Ademir Costa

Esta é uma homenagem a Dom Aloísio Cardeal Lorscheider. Nele, o título de cardeal caiu bem. Só um papa estadista como Paulo VI seria capaz de reconhecer no arcebispo de Fortaleza a dignidade de que era merecedor. Mérito pessoal, diga-se. Porque há cardeais elevados a tal dignidade pela dimensão histórica da diocese que ocupam. Com ele foi diferente: presidente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), presidente da Cáritas Internacional, presidente do Conselho Episcopal Latino-Americano (Celam), Secretário do Sínodo dos Bispos, no Vaticano... Bem, não dá para me lembrar agora de todos os organismos de que foi presidente, naquele quarto de século importantíssimo que vai de 1960 a 1985. Fase de transformações marcantes para a inserção da Igreja no mundo, período de implantação das diretrizes do Concílio Ecumênico Vaticano II, realizado de 1962--1965.

Para ser breve e direto, vou relatar em tópicos rápidos alguns fatos do pastoreio de D. Lorscheider que me impressionaram bastante. Podem nem ser os mais importantes. São os que me tocaram como observador jovem. Lembre-se de que eu tinha entre 22 e 26 anos, naquela época.

1. Dom Aloísio chega do Vaticano e reine toda a cúria para relatar as discussões de que participara. Diz da dificuldade que se tinha, na época, de saber quando um chefe de Estado falava a verdade e quando mentia. Nessas circunstâncias, era difícil tanto a intervenção diplomática do Vaticano como a inserção pastoral da Igreja.

2. O Grupo de Jovens de S. Benedito é recebido em audiência por D. Aloísio. Os moços querem realizar uma espécie de congresso de todos os grupos jovens da arquidiocese. Dom Aloísio concorda e autoriza o evento, mas dá duas diretrizes: eles deveriam juntar-se ao Irmão Maurício Labonté, coordenador do Movimento de Juventude, e pedir apoio da Sala de Imprensa da Arquidiocese. Com isso, ensinava os jovens o respeito à hierarquia, ao tempo em que indicava que as iniciativas da Igreja precisam do suporte dos Meios de Comunicação Social. Realizou-se por vários anos a Integração Jovem de Fortaleza, reunindo até 4.000 jovens no Ginásio Paulo Sarasate. Nesses encontros, os jovens discutiam temas religiosos que tinham recados políticos em plena ditadura: "Unidos Cresceremos", "Jesus Cristo Liberta e Une", "O Amor de Cristo nos Uniu". Em tempos ditatoriais, chamar à união já era avanço. O verbo libertar era censurado.

3. Um dos resultados das Integrações Jovens foi a criação do Setor Arquidiocesano de Juventude (Sajuv). Antes, irmão Maurício cuidava apenas do Movimento de Jovens, voltado exclusivamente para a juventude da Aldeota, então o bairro mais rico da cidade. O Sajuv passou a ser integrado pelas representações de outros movimentos, da periferia de Fortaleza e da zona rural. Isso foi um avanço e tanto!!

4. Depois de uma das visitas de Dom Aloísio ao Vaticano, em sua reunião de repasse à cúria, ele falou sobre a escassez de água no planeta Terra. Da necessidade de economizar água, não poluí-la, deixá-la para as futuras gerações. Foi a primeira vez que vi alguém falar da água com aquela preocupação. Posteriormente, refleti sobre a importância da pessoa estar bem informada para agir na sociedade. Com certeza, aquele foi meu primeiro contato com um discurso sobre a água em uma perspectiva ecológica da atualidade do Século XXI.

5. Cheguei na Sala de Imprensa às 7h30min. O alvoroço era grande. Um missionário francês havia sido preso pela Polícia Federal minutos antes. Sabia ser aquela polícia pelo método: estavam à paisana, em um fusca no qual jogaram o padre com violência, após imobilizá-lo sem voz de prisão, sem conversa. Dom Aloísio embarcou imediatamente para Brasília. À noite, o Jornal Nacional dava a notícia da extradição do padre, assinada por Ernesto Geisel. Eu achava que o arcebispo devia fazer um estardalhaço, um discurso ou uma nota dura. Seguramente, eu não tinha idéia segura do terreno em que pisava... Mas isso eu concluo hoje. Naquele momento, eu ficava com raiva do bispo, achando-o fraco. A vida nos ensina a sabedoria de "engolir sapos".

6. Todos os dias eu redigia na Sala de Imprensa o programa "A Casa de Todos", da Rádio Assunção. Noticiário que terminava com um comentário feito a partir de algo do dia ou de um tema humano ou religioso. O importante era levar um ensinamento. Inicialmente eu redigia as notícias e Frei Vito Carneiro, o comentário. Posteriormente, passei a escrever os dois textos. Dom Aloísio nunca interferiu. Não sei quantos bispos delegavam ou delegam hoje a um jovem o papel de escrever textos que todos ouvem como sendo a palavra da arquidiocese. Não só pelas verdades de fé e pelas diretrizes pastorais, mas, principalmente, naquele contexto de ditadura. Pelo contrário, ele sempre tinha uma palavra de elogio. A Frei Vito e à equipe integrada também por Irmã Zelma Oliveira (Paulina) e por um estagiário da Faculdade de Comunicação da Universidade Federal do Ceará. Lembro-me de Rosires Passos e José Maria Bezerra como estagiários, hoje profissionais.

7. Dom Aloísio reunia-se com a equipe e planejávamos os momentos marcantes do ano, as ocasiões em que ele deveria reservar dia de sua agenda para receber os jornalistas em coletivas de imprensa e a data do almoço com o pessoal da mídia. Nós sabíamos da cheia de sua agenda. Ele demonstrava real apreço para com a imprensa. Atendia sempre, com boa vontade e na hora marcada (sabia da crucial importância do tempo para a imprensa). Tinha sempre uma resposta adequada, não se irritava com perguntas sem fundamento (é muito difícil encontrar jornalista preparado que saiba fazer perguntas com boa fundamentação religiosa e filosófica). Ele sabia "fazer do limão uma limonada". O(a) jornalista aprendia e saía satisfeito com sua matéria. Ele aproveitara a oportunidade para informar.

8. Os assessores de Dom Aloísio se preocupavam com o assédio da imprensa, especialmente em situações graves como a prisão do padre em Fortaleza, o assassinato do Pe. João Bosco Burnier, no Sudeste, o fechamento do Congresso Nacional, por Geisel. Conversando com nossa equipe do Setor Arquidiocesano dos Meios de Comunicação Social, ele minimizou certa vez. Lembro-me do sorriso maroto dele, enquanto dizia, os olhos brilhantes e em movimentos rápidos: "O pessoal se preocupa, mas eles (jornalistas) às vezes nem vão ao ponto principal. De qualquer forma, a gente não precisa temer". Aqui estão subjacentes três informações: 1- os jornalistas despreparados; 2- a censura que tolhia a liberdade de o jornalista fazer perguntas; 3- ele estava preparado e não temia. Com seu relacionamento, Dom Aloísio contribuiu para solidificar a formação de alguns jornalistas da cidade. Apoiou as organizações de jornalistas em geral e as entidades de jornalistas de fé declarada como a União Cristã Brasileira de Comunicação.

9. Dom Aloísio carregava responsabilidades de nível mundial. Mas nunca chegava atrasado a um compromisso conosco ou com a imprensa. Eu achava isso impressionante. Quase nunca se irritava. Eu o vi irritado uma vez, no máximo duas. Não me lembro o porquê. Eu que sempre o via sereno e com um sorriso, portanto, naquela(s) oportunidade(s) não levei a mal. Ele era humano, pensei, contemporizando com sua chateação.

10. A atenção de Dom Aloísio para com os pequeninos era uma ação profética em seu pastoreio. Lembro-me de uma ocasião em que ele chegou do Vaticano, visitou todas as salas da cúria (como sempre fazia), pegou o fusquinha e foi para uma reunião com moradores de uma comunidade rural. Calça e camisa de mangas compridas. Distintivos de autoridade só o colarinho eclesiástico e o anel de bispo. Este, por sinal, uma peça bastante simples, sem pedra, como recomendado pelo Concílio Vaticano II. Apoiava as comunidades em sua luta por terra, água e moradia, e ali dava verdadeiras aulas de religião. Eu pensava comigo: que cara dedicado! Tão importante, ora no Vaticano, ora em uma comunidade rural, sentado em um banquinho, conversando com o povo, ouvindo e ensinando.

11. Ainda no capítulo simplicidade: ao chegar como cardeal em Fortaleza, todos esperavam D. Aloísio descer do avião com batina vermelha, aqueles sinais de "príncipe da Igreja". Nada disso. Ele chegou na catedral com sua roupa de sempre e na celebração ele nem ostentou o barrete cardinalício. No sermão, virou o jogo a favor de um empreendimento ainda inconcluso: "Vocês têm um cardeal, mas ainda não têm uma catedral". Foi a senha para o esforço maior da cidade a fim de concluir o templo.

12. No nosso trabalho no Setor dos Meios de Comunicação, nossa equipe evitava interpelar Dom Aloísio. Quando necessário, Frei Vito ou Ir. Zélia ir falar com ele para marcar entrevista ao vivo ou uma gravação. Nas reuniões internas, nas audiências, coletivas de imprensa ou almoço com a mídia, eu ficava sempre distante. Para mim, o interlocutor era Frei Vito. Dom Aloísio percebeu isso e, por várias vezes, falou comigo, incentivando a conversa entre nós. Eu achei aquilo muito altruista da parte dele que, até por dever de ofício, tinha gente importante para dar atenção. Foi a minha impressão naquele momento.

13. A ação de Dom Lorscheider em favor dos pobres ocorreu de diversas formas, além das já citadas: o apoio às famílias da favela no final da Av. José Bastos, ameaçadas de despejo, foi um divisor de águas. A abertura política seguia em curso. Os movimentos sociais de esquerda aproveitaram o fato e o momento para uma ação mais agressiva. Todo o aparato da arquidiocese foi colocado a serviço da causa. Sua carta por moradia para os pobres na área urbana causou furor entre os especuladores, por seu raciocínio simples e irrefutável: "os pobre não podem morar no ar". Os militantes de esquerda tinham nele o apoio seguro, discreto e por muitas vezes decisivo. Em 1975, Ano Internacional da Mulher, trouxe para Fortaleza duas militantes da causa feminina. Uma delas, Moema Toscano (esqueço a outra). Do discurso delas, lembro-me de que "os filhos não são filhos só da mulher-mãe, mas de toda a sociedade". Semente da licença-maternidade e da folga para o pai quando do nascimento dos filhos, por exemplo. A partir daquele momento, organizou-se em Fortaleza a União das Mulheres Cearenses.

Estes são registros de Dom Aloísio, homem que poderia passar como um navio que não deixa rastros. Preferiu, entretanto, ser homem arado, isto é, desagradou a alguns, mas deixou a terra frutificando mais. Os pobres e os defensores dos pobres ainda hoje lhe são gratos. Sua última grande tarefa profética foi ajudar a criação do Conselho Nacional dos Leigos. Os tempos são outros. As amarras, enormes. Mas esse conselho ainda pode fortalecer, e muito, a atuação dos leigos dentro da Igreja e na transformação da sociedade. Isso, evidentemente, já não dependerá de Aloísio Lorscheider. É tarefa dos próprios fiéis.

Terça-feira, 25 de Dezembro de 2007
DOM ALOÍSIO, TÁ VIVO NA TERRA E NA ETERNIDADE

Por
Leonardo Sampaio
Educador Popular -- 25/12/2007

Hei Dom, você tá vivo. lembra das nossas lutas e caminhadas de fé e esperança? Fé e libertação? Fé e política? Fé e opção pelos pobres? Lembra da tua visita pastoral as Comunidades Eclesiais de Base – CEBs da Fumaça, Entrada da Lua e Inferninho? Da caminhada realizada na Favela? Foi tão libertadora que as famílias ainda hoje falam da sua humildade e simplicidade, do seu sorriso dando a mão, falando com cada pessoa pobre e abençoando. Eram pessoas que naquela época não conseguiam falar nem com o Vigário e ali conversavam com o Cardeal quase Papa. Quanta felicidade você trazia para aquelas famílias migrantes da seca, faminta de sonhos e esperança da qual você alimentava como pastor e profeta da Teologia da Libertação, resgatando o Cristo que veio em vida para nos libertar!

Dom, lembras as reuniões da Forania, dos confrontos acirrados entre leigos e padres que não aceitavam a orientação libertadora da Igreja, onde tinha padres que trazia seus discípulos pra nos chamar de comunistas e você ficava parecendo um arco-íris mudando de cor e falava sempre com muita firmeza em defesa da Igreja do Cristo Libertador, do Cristo que não dá o peixe, mas que ensina as pessoas a pescar.

Essas mesmas cenas se repetiam nas Assembléias Arquidiocesana de Fortaleza, na década de 1980, onde camponeses/as, trabalhadores/as rurais e desempregados/as se encontravam na mesma fé cristã aprendida nas Comunidades Eclesiais de Base – CEBs, muitas vezes perseguidas pelos vigários e fortalecidas na palavra e força do Arcebispo Aloísio Lorscheider. Assembléias em que não se conseguia o consenso, nem com a franqueza da sua palavra, era uma luta de poder disputada na votação.

Como eram bons aqueles momentos acirrados entre a Igreja conservadora e a Igreja libertadora! Lá todos estavam juntos no mesmo palanque, com o mesmo direito de voz e voto, ali, estávamos exercitando a democracia, a participação, a disputa de poder. Como aprendemos nessa escola da vida, administrada por você, sem o uso da hierarquia, buscando sempre o convencimento, a compreensão, o entendimento sobre os ideais cristãos libertadores!

Ainda era tempo de Ditadura Militar e não conhecíamos os instrumentos democráticos de participação e foi você que nos proporcionou esse espaço, abrindo as portas da Diocese para a participação dos pobres. Foi assim, no apoio à luta por reforma agrária e urbana, defendendo as ocupações de terra, vendo a propriedade privada não como direito, mas como uma hipoteca social. Foi assim, durante cinco anos de seca (1979 a 1984), quando os camponeses ocuparam Fortaleza em busca de alimento, moradia e trabalho, quando organizou-se a Jornada de Luta Contra a Fome, quando foi necessário acampar em frente ao Cambeba e fazer greve de fome diante da intransigência do Governador Tasso Jereissate, reprimindo o movimento organizado com polícia, em vez de atender às suas necessidades.

Dom, foi você que me fez deixar de ser ateu, encontrei na sua espiritualidade e nas suas ações, o Deus que acolhe, que liberta, que é amigo, o Deus do amor, da justiça e da fraternidade. Um dia conversamos sobre isso, eu, você e a Lúcia minha companheira, quando vínhamos juntos no carro de Pacajus a Fortaleza, pegamos uma carona e você era quem dirigia. São essas coisas que o tornam imortal e eterno no céu e na terra. Que me permite essa intimidade de conversarmos de mim pra você. De saber que estais reunido com os companheiros e companheiras da mesma caminhada que seguiram antes pra eternidade.

O Espaço Cultural Frei Tito de Alencar (ESCUTA) te agradece por tudo que fizeste pela sua existência. Estas são as denominações anteriores do ESCUTA (Comunidade Eclesial de Base Frei Tito de Alencar, - Escolinha Comunitária Frei Tito de Alencar, Centro de Educação Popular Frei Tito de Alencar – CEPOFTA). Hoje é Natal de 2007. Deus esteja conosco. Amém, aleluia, axé.

Nenhum comentário:

Postar um comentário