sexta-feira, 10 de julho de 2009

Rodolfo Teófilo Põe a Nu a Sociedade Cearense de Seu Tempo

A resenha de A Fome mostra que um membro da elite científica denuncia os cearenses de seu tempo e a humanidade de todas as épocas

TEÓFILO, Rodolfo. A fome, Rio de Janeiro: J. Olímpio; Fortaleza: Academia Cearense de Letras, 1979. (Coleção Dolor Barreira; v. N. 2).


Eis um livro comovente, cru, que faz refletir pela maneira cortante como Rodolfo Teófilo escreve. No meu entender, seu foco é a pessoa humana, suas virtudes e demências. Um membro da elite cearense denuncia com sua obra e com sua vida os erros de sua própria classe social, a humanidade de todos os tempos. Ele expõe, lado a lado, as falhas abissais e as virtudes olimpianas da humanidade nos personagens de seu romance – ou seria uma reportagem travestida de literatura? O ambiente retratado é a seca de 1877, seguida de uma epidemia de “peste”. Impossível não detectar o caráter de denúncia a perpassar sua obra. Arguto, ele prenuncia Jean Paul Sartre: cada homem é o que decide ser.

Outro dia levantei na aula do mestrado em desenvolvimento e meio ambiente (Prodema), da Universidade Federal do Ceará, a necessidade de o cientista ou pesquisador colocar seu saber a serviço do gênero humano. Dizia eu que quem faz um curso superior no Brasil é membro da elite. Grande foi a discussão que se seguiu. É difícil ver-nos como elite. A palavra incomoda, pois seu uso corrente traz uma conotação pejorativa. Natural que venham as qualificações para melhor enquadramento dela, do tipo: não somos elite econômica, mas intelectual. De acordo. Rodolfo Teófilo assumiu sua condição de elite, mas optou pelos fracos.

Farmacêutico, filho de médico, Teófilo pinta um painel no qual a pessoa humana aparece em nuances que vão da crueldade à santidade, do monstro feroz à extrema gentileza, do jogo baixo à nobreza da doação. Estas e outras características fazem seus personagens imperdíveis, em seu livro-reportagem, mesmo quando a leitura nos provoca náuseas.

Santos e Loucos – Eis alguns personagens e suas respectivas marcas: Manuel Freitas, o provedor. Símbolo e guardião dos valores do campo. De Presidente da Câmara e Coronel da Guarda Nacional, é reduzido a retirante. Humilhado pela seca que dizimara seu gado, a contragosto vende os escravos e ruma de Quixadá para Fortaleza. Ainda homem forte, mata uma fera e garante fartura para os seus; velho e fraco, carrega pedras para garantir a ração da família. Não se dobra, porém, a quantos tentaram seduzi-lo com favores de toda sorte. Dessa forma, consegue manter a integridade dos seus.

Josefa, mulher de Freitas. Quase não fala em todo o livro. Símbolo máximo da fé, mostra um traço considerado ingênuo por quem olha o mundo sob a ótica da esperteza. Ela encarna virtudes como recato, honradez, cuidado com a família e caridade genuína para com todos – notadamente ao concordar em receber o primo que traíra o marido e em acolher Filipa, a escrava idosa e louca.

Inácio da Paixão
. Primo de Freitas, em nome deste vende os escravos, torra o dinheiro no jogo e, a um certo ponto, vê-se escravo na Amazônia, junto a tantos outros cearenses empurrados para o exílio, conforme a política governamental de “livrar-se” dos retirantes que superlotavam Fortaleza. Arrependido, em um lance de sorte, ganha na loteria, volta para Fortaleza, reconcilia-se com o primo e repara um pouco de seus erros. Trata-se de um símbolo de superação. Sua trajetória lembra a do Filho Pródigo do Novo Testamento, ou o Cristo que do sofrimento (paixão) sai para a glória (ressurreição, nova vida). Pode ser exagero meu, mas que evoca esses personagens, evoca.

Prisco da Trindade
, o comendador traficante de escravos. O negócio era legal, portanto socialmente aceito, mas RT o escarnece. É símbolo maior de vileza ressaltada nos estupros das escravas, nas falsificações de documentos e trapaças de toda ordem, ao tempo em que “comprava” elogios com suas festas destinadas a obter notas em jornais.

Faustina representa o fausto da “corte” local, com seu gosto por moda, perfumes e trejeitos franceses. Cruel com os escravos, permissiva com o marido, leniente com o filho, bem caracteriza um dos comportamentos de desrazão a desfilar na obra. Com o marido Prisco e filho, compõe uma espécie de “malditíssima trindade”, como sugeriu o colega Davi em sala de aula.

Filipa, a escrava mãe de Bernardina de apenas 10 anos. Os suplícios que a filha sofre e a venda desta, que é enviada para o Sul, são golpes impossíveis de suportar. Ao resolver este impasse com a loucura da escrava-mãe, estaria Rodolfo Teófilo informado de estudos que colocam a perda da razão como refúgio da mente que se nega a enfrentar realidade tão adversa? Ou antecipou-se a pesquisas que levaram a esta conclusão no século XX?

Bernardina fala pouco no romance. Seu silêncio na obra revela como as crianças eram silenciadas no círculo familiar, onde, para serem ouvidas deveriam sempre pedir licença. Os filhos crianças de Freitas nunca falam. Em todo o livro as crianças só têm voz passiva. São vítimas sempre. Há o relato de uma devorada ainda viva, por morcegos famintos, pois nascera enquanto sua mãe morria. Na obra, como na sociedade de então, o destino das crianças é morrer, seja pela seca, seja de peste. Realidade a perdurar em nossa sociedade, onde as crianças são as primeiras vítimas também do trabalho escravo e da exploração sexual, símbolos da eterna violência.

Simeão de Arruda é o protótipo do servidor público. Nomeado Comissário na base do favor, para acomodações políticas, gere a verba Socorros Públicos como coisa pessoal e, com isso, alcança fins ilícitos de toda ordem, conforme seus desejos, e o romance destaca seus descontrolados desejos sexuais no comando de suas ações que envolvem compra de favores, construção de moradia para Freitas no intuito de seduzir sua filha, presentes para a garota e conluio com a feiticeira. Estupra a órfã Vitorina, crime de torpeza maior. Fica a dúvida se seu arrependimento no final é verdadeiro ou se apenas chora remorço e dor física. Morre junto com o filho que acabara de nascer e com a mãe deste que lhe joga na cara a acusação e nos braços o fruto jamais assumido ou desejado.

O filho de Simeão nasce, a mãe morre e o pai agoniza. Filho-desgraça da mãe, rejeitado desde que tomam conhecimento dele. A “trindade maldita” formada pelo casal e pelo filho encarna a extrema desgraça a que as ações de uma pessoa conduz uma família. É o símbolo maior do alcance social do agir humano. Deduz-se ter o nascituro provocado o despejo da mãe pela “família caridosa” que a recebera. Fica o registro de uma caridade insatisfatória, da necessidade de políticas públicas de acolhimento às mães em situação similar. Com quanta antecedência!!

Quitéria, a feiticeira. Encarnação do mal e da dissimulação, faz tudo por dinheiro e morre a lamentar tantas notas em seu poder, inúteis. Vivendo sincretismo religioso tal que acende uma vela para Deus e outra para o diabo, faz-se passar por devota convicta. Sua conivência com as “marmotas” de Simeão levam-na a uma teia de infindáveis mentiras. O autor dá-lhe morte (castigo privado, no interior da casa, sem testemunhas) de crueldade proporcional a seus feitos e a putrefação de seu corpo equivale a uma punição pública por tantos males causados a outros. Se só homens bêbados conseguem lidar com ela em seu estado final, isso parece significar que só pessoas sem consciência, ou entorpecidas por seu “encantamento” podiam relacionar-se com ela ainda viva.

Carolina, filha de Freitas
. Símbolo da beleza da juventude, boa filha, não fala do amor que guarda no coração. Ideal de mulher jovem da época, que não decide ativamente seu destino. Até o “sim” ao casamento dá só com o olhar. O corte do cabelo para vendê-lo e, assim, tentar remediar os sofrimentos da família, é gesto que fazia parte dos rituais de iniciação das moças em conventos onde se tornariam freiras. Tanto aqui como na vida religiosa, tem o significado de extremo desprendimento. Simbolismo também válido para os padres que tinham cabelos de corte muito curto, embora falte menção a isso no livro. O cuidado com os cabelos é sempre colocado nessas obras como indício de vaidade.

Edmundo da Silveira. A descrição de sua imagem ressalta-lhe as qualidades na mesma proporção que a tela do comendador lhe destacara o jeito balofo. Trata-se do legítimo representante da beleza do jovem “cabeça chata”, cor de jucá, cavalheiro, corajoso. Põe o direito a serviço das boas causas. Assim, livra do linchamento o canibal de Canindé. Sua juventude vence a doença, em flagrante contraponto a quantos sucumbem à morte ao longo do romance-jornalismo. Ele e Carolina são esperança de futuro.

Os representantes da elite são os mantenedores do esquema de morte: o governador que a todos promete, distribui favores a alguns e assiste passivamente à corrupção ceifar vidas; os coronéis da hinterlândia, cujos partidos políticos desprezam seus próprios aliados, quando estes caem em desgraça, como o Freitas na cidade; o padre do sertão, tão devoto quanto insensível; os senadores no Rio a deitar discurso contra o povo, taxando-o de preguiçoso; a polícia e sua violência contra pessoas indefesas e a serviço dos privilegiados.

Mais contrastes – Há na obra várias situações opostas e aqui registro algumas: o padre do sertão, preposto do governo, cujo corpo obeso contrasta a esqualidez dos deserdados da seca e cuja reza de devoção faz paralelo com o desprendimento do Pe. Clemente, magro de tanto trabalhar pelos pobres, a só comer das espórtulas que lhe davam. Seguramente davam pouco, já que a desgraça dominava a população.

O padre da cidade pequena afastado dos desvalidos, este a ouvir as confissões dos que exalavam hálito fétido. O sacerdote velho, acomodado preposto do poder, quem sabe, amasiado com alguém – o relato acerca do descumprimento do celibato sacerdotal o sugere; o padre novo é clemente (definido assim por seu próprio nome) para com o povo. Independente em relação ao poder, vence a reação do corpo virgem, ante o apelo natural do sexo, e devolve aos pobres, em forma de alimento, a verba que fora surrupiada dos cofres do Socorro Público.

A mulher de Prisco é o oposto da mulher de Freitas; o palacete do comendador, adquirido à custa de tantas usurpações e onde abriga sua família é o reverso da “trindade desamparada” de Freitas, Josefa e seus dependentes, a viver debaixo de um cajueiro porque ele se nega a continuar morando de “favor” de Simeão Arruda. A mãe Filipa é liberta doente e velha, enquanto a filha Bernardina permanece na escravidão e é vendida com saúde e ainda criança.

As festas políticas do comendador Prisco, onde a sociedade se banqueteava, e a bajulação de que é alvo em seu aniversário são escândalos ante a miséria dos abarracamentos e do tratamento dado ao retirante apanhado a roubar “um pau de macaxeira” para matar a fome, “amarrado e surrado até a morte” (p. 55). Há um paralelo com os famintos que atacam o carregamento de farinha, no oásis em que se encontrava a família de Freitas, durante a viagem. Se de um lado Rodolfo Teófilo mostra escárnio ante as festas sem sentido da elite, de outro mostra admiração incontida, ao falar da dedicação das “irmãs de caridade” para com os doentes, elas filhas da aristocracia francesa e seguidoras de Vicente de Paulo.

A descrição da paisagem faz o leitor sair do sertão verde que se torna cinza com a falta de chuva. A seca transforma a terra, a vegetação e os animais, o homem incluído. A penúria extrema leva à desrazão, a ponto de um humano ser assemelhado a “um bicho”. Toda a natureza se revolta em ânsias de sobrevivência que se transmutam em guerra declarada de todos contra todos. Destrói-se a harmonia sistêmica dos tempos de bonança.

A linguagem dos corpos – Rodolfo Teófilo retrata em seu livro uma verdadeira coreografia dos corpos humanos. Os corpos falam. Em suas descrições, vez por outra um comentário reflexivo, como ao descrever os negros nus para o exame médico: “homens sadios e fortes se submetiam de corpo e alma à vontade de outros homens” (p. 63). Na ocasião, ridiculariza a ignorância do “médico” ao diagnosticar uma lesão no orifício aórtico, "uma sentença de morte". O corretor arranca o lençol de Filipa, “as duas outras se abraçam” (p. 65). Na página seguinte, Prisco diz palavras consoladoras. As negras lançam olhar de gratidão que ele não vê, pois, “pasmo pela beleza da mais nova das raparigas, sentiu-se devorar de desejos”.

A atitude do médico é vil: “estava cevando a sensualidade naquela apalpação”, condena o autor. De Elias, o escravo-algoz, Teófilo escreve: “a figura do negro tinha um quê de sinistro”. E de sua vítima Bernardina, em carne viva após as chicotadas, mostra o cenário: ”no chão, excrementos líquidos e sólidos”. Corpos de situações antagônicas unem-se na doença: a epilepsia de Filipa é a mesma do mimado Jacó, o filho da fútil Faustina.

Ao ver o corpo de Manuel da Paciência, o comendador traficante “ficou perdido pela peça. A musculatura e os dentes perfeitos, sem faltar um só, desafiavam sua cobiça” (p. 89). O dono do capital vibra ante o lucro a tirar daquele corpo livre que em instantes será comprado. Paciência é espancado sem ser escravo e apesar de inocente. Vítima duas vezes da ação desastrada de Inácio da Paixão, o patrão em quem confiava em sua bondade de justo. Liberado, volta ao sertão. É a senha de que alguns sobrevivem às atrocidades da natureza e de seus semelhantes.

O leitor acompanha Freitas. Sua postura corporal reflete a força muscular capaz de dominar a fúria da onça, de processar o vegetal, salvação de sua família, de carregar corpos para o sepultamento; sua altivez dobra a arrogância do chefe político acostumado a receber lacaios aos quais distribuía favores. Seu corpo definha na fome, verga sob o peso da pedra, mas sua rigidez moral é inquebrantável, a simbolizar a ética do camponês nordestino.

Em sua crueza naturalista, Rodolfo Teófilo fecha o livro com duas situações que se fundem em apoteose: o reencontro de mãe e filha, Filipa e Bernardina, antes escravas, agora livres. Se a separação faz irromper a demência da mãe, o retorno da filha devolve a saúde àquela que lhe dera a vida e ambas são iguais na liberdade – ideal presente em toda a obra. Os jovens se casam, a chuva foi portadora da festa, os antes retirantes retornam à sua cidade natal. A vida volta a pulsar com esperança.

Ademir Costa
jun/2009

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