domingo, 10 de fevereiro de 2008

Ainda Aceitamos Tacitamente o Coronelismo!!

De tanto ver triunfar as nulidades, de tanto ver prosperar a desonra, de tanto ver crescer a injustiça, de tanto ver agigantarem-se os poderes nas mãos dos maus, o homem chega a desanimar da virtude, a rir-se da honra, a ter vergonha de ser honesto. (Senado Federal, RJ. Obras Completas, Rui Barbosa. v. 41, t. 3, 1914, p. 86).

Por
Ana Cândida Echevenguá
Advogada.
Presidente da Ambiental Acqua Bios
Coordenadora do Programa Eco&ação.
http://www.ecoeacao.com.br/
(48) 84014526 - Florianópolis, SC.


Para Freud, o homem é um animal, em sua essência, cujo sentimento de superioridade levou-o a criar uma ordem civilizada para diferenciar-se do animal não-humano. Mas, não conseguindo transcender sua animalidade, como membro integrante duma amoral ordem predatória, sujeita-se aos instintos básicos animais. A vitalidade do animal-homem irrompe indiferente a valores do bem e do mal. Por isso, liberdades culturais produzem nefastos desequilíbrios. Por isso, incentivamos a violência! E convivemos, de forma harmônica, com a impunidade!


A primeira pesquisa de vitimização feita em quatro capitais brasileiras - São Paulo, Rio, Vitória e Recife apurou:


1- as dimensões da insegurança brasileira: 67% das pessoas ouvidas sabem que serão vítimas de roubo ou furto; 57% disseram que evitam locais por razões de insegurança;


2- que ocorrem três vezes mais crimes do que o registrado pelas Polícias Civil e Militar: apenas 27,1% das vítimas, nos últimos cinco anos, de algum delito, notificaram a polícia;


3- que 51% da população foi vítima de delito nos últimos cinco anos e 67% crê piamente que será roubada ou furtada;


4- os três fatores que levam ao silêncio da vítima: a escolaridade, o tipo de crime (exemplo: 14% das agressões sexuais são informadas à polícia) e a confiança na polícia. Infelizmente, a polícia é uma instituição em descrédito!


O povo foi deixado à mercê da arrogância e truculência policial, em total afronta ao Estado Democrático e de Direito e em detrimento da liberdade do indivíduo. Mas precisa proteger-se contra atos opressivos ou destituídos do necessário coeficiente de legalidade e de razoabilidade.


Pois bem, vou contar um fato que presenciei no dia 23 de outubro de 2003!


Um jovem foi vítima de várias ilegalidades e injustiças: 1. Diante da atual desordem e insegurança pública reinante, furtaram-lhe os documentos, inclusive a carteira de habilitação. 2. Não pôde cumprir os requisitos administrativos para obtenção da segunda via desta porque os trabalhadores banco estadual competente – BESC – estavam exercendo o direito de greve. 3. Precisava locomover-se para trabalhar e estudar. Afinal, a vida continua!


Fazendo uso de seu veículo ciclomotor, sem a documentação exigida pelo Estado que não lhe deu proteção, sofre um acidente de trânsito. Mais uma vez, o Estado não atuou na guarda e fiscalização do trânsito urbano. Meia dúzia de policiais militares, em duas viaturas oficiais, chegam ao local, após o acidente. E se limitam a conduzir os envolvidos no sinistro à Delegacia de Polícia Civil. 4. As partes, após razoável tempo de espera, prestam seus depoimentos de forma civilizada, embora estejam visivelmente nervosas. O responsável civil pela coleta das declarações cumpre, de forma exemplar, seu dever legal. 5. Enquanto acompanhava estes procedimentos, ouvi um susurro: "o coronel chegou!".


Ingressa na sala um coronel fardado, integrante da Polícia Militar. Dirige-se – como se fosse o dono da casa - ao escrivão e, em flagrante abuso de autoridade e em manifesta proteção pessoal à administrada/motorista do veículo responsável pelo acidente, diz: "deve constar no Boletim de Ocorrência que o rapaz estava dirigindo sem a carteira de habilitação". O clima por ele gerado foi estarrecedor! Parecia querer informar que o rapaz acidentado era um bandido, um inimigo da democracia (embora, neste pseudo-estado democrático, seja irrelevante a rotulação dada ao nosso regime).


Entendi que o coronel era pai de uma das acompanhantes da administrada/depoente. E estava ali pra prestar-lhe apoio pessoal (com características claras de apoio institucional, já que devidamente uniformizado, com estrelas reluzentes, amealhadas ao longo do exercício de sua atividade, à mostra). Perguntei-lhe qual era seu interesse no caso: ele silenciou. Pedi ao pai do rapaz ferido que anotasse o nome e posto do militar, identificação visível em seu fardamento. O coronel chamou-nos de "babacas", por tomarmos essa atitude. E sua filha proferiu palavrões que prefiro não reproduzir.


Naquela hora, tive a sensação de ter ingressado nos livros de Franz Kafka, cujas obras criticam a opressão burocrática das instituições, a pseudo-justiça e a fragilidade do homem do povo no enfrentamento dos problemas cotidianos. Ou de ter retornado ao período de trevas da ditadura, em que preponderava a liberação dos instintos do subterrâneo e era permitido o juízo ou tribunal de exceção. Em 2003, ainda aceitamos tacitamente o coronelismo!! O ato, acima mencionado, do coronel feriu, em especial, os preceitos do artigo 37 da nossa Constituição Federal, e alguns dos princípios ali elencados: legalidade, impessoalidade, moralidade. E a Constituição Estadual de Santa Catarina, entre outros.


Fernando Henrique Cardoso deixou a presidência alegando o banimento do coronelismo da vida política brasileira, apesar de incentivar o fortalecimento da autonomia policial e de combater abertamente o Ministério Público. Victor Nunes Leal escreveu que "Durante a primeira República, a organização policial foi um dos mais sólidos sustentáculos do 'coronelismo' e, ainda hoje, em menores proporções, continua a desempenhar essa missão" (pág. 226).


Cabe ao Estado dar o exemplo à sociedade da aplicação da Justiça, dos valores morais e éticos que devem ser perseguidos pela Administração Pública. Se este mesmo Estado descumpre as normas insertas nas suas Constituições, cabe à Justiça manter o equilíbrio, coibindo abusos e ilegalidades.


Fala-se em democracia no Brasil. Mas aqui vige a tradição do Estado forte e absoluto, desrespeitador dos direitos e garantias individuais e coletivas. A falta de vergonha e de moral é um câncer que deve ser extirpado da Administração porque fomenta a impunidade. Os administradores continuam usurpando a democracia, em benefício de interesses escusos, maculando-a, sob a débil e enfadonha desculpa do perigo vermelho.


O brasileiro sabe, embora nossos governantes insistam no firme propósito de mantê-lo ignorante, que existe uma Constituição, a garantir seus direitos. E espera da polícia e dos tribunais a preservação do Estado de Direito. Mas, ainda fecha os olhos e a boca para a injustiça. Os atos dos policiais não são discutidos, salvo se as próprias corporações quiserem. A absolvição dos 123 PMs de Eldorado dos Carajás é um exemplo clássico. Há mais de cem anos, Rui Barbosa já pregava que todas as crises do Brasil são sintomas da crise moral.


Obras consultadas e citadas:
1 - ‘Coronelismo, enxada e voto – O município e o regime representativo no Brasil’, 3ª edição, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1997.
2 - A Emenda Constitucional 33, de 13 de junho de 2003 deu a seguinte redação ao artigo 107 e seus incisos, da Constituição do Estado de Santa Catarina: "Art. 107. À Polícia Militar, órgão permanente, força auxiliar, reserva do Exército, organizada com base na hierarquia e na disciplina, subordinada ao Governador do Estado, cabe, nos limites de sua competência, além de outras atribuições estabelecidas em Lei: I – exercer a polícia ostensiva relacionada com: a) a preservação da ordem e da segurança pública; (...) e) a guarda e a fiscalização do trânsito urbano; (...) III – atuar preventivamente como força de dissuasão e repressivamente como de restauração da ordem pública.

Um comentário:

  1. Ademir, mudei de endereço.Por isso, somente há poucos dias sua correspondência chegou ao meu novo endereço.Imagine que eu só mudei de rua, não de cidade. Fiquei triste em ter perdido tanta coisa boa que aconteceu no encontro em São Luis.

    Benedita Mendes Serra
    beneditaserra@yahoo.com.br

    02/03/2008

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