terça-feira, 12 de fevereiro de 2008

Uma Viagem no Tempo: Os Empinadores de Papagaios

Aos garotos maranhenses não foi proibido “empinar e escorar papagaios”, no entanto, um pequeno grupo se auto-declarou dono do Estado e castrou os sonhos da maioria deles, para construir fortuna e agir como se o Maranhão fosse a sua propriedade.

Por
José Lemos
Engenheiro Agrônomo
Professor Associado na Universidade Federal do Ceará
lemos@ufc.br

O livro “O Caçador de Pipas” de Kaled Husseini, se constitui numa bem tramada mistura de ficção com a vida do autor da obra na sua fase de criança e adolescente no seu país, Afeganistão, no começo dos anos 1970. A narrativa serve para mostrar a trajetória de sofrimentos daquele povo, causada por descalabros de toda ordem, em que um pequeno grupo de pessoas, ao tempo em que acumulou fortunas, aproveitando-se da pobreza da maioria, tornou aquele pais inabitável para a maioria dos seus filhos. País marcado pela intolerância entre etnias, antagonismos religiosos e, como conseqüência, desigualdades sociais profundas.

A trama mostra a relação de amizade entre dois meninos de etnias distintas: um rico e um de etnia pobre, filho de empregados do pai do amigo rico. Mais tarde a estória mostra que a relação dos dois vai bem além da mera afeição de amigos. De fato eram irmãos pelo lado paterno. O garoto pobre tinha habilidades nas estripulias juvenis que o menino rico não conseguia ter, o que deixava o rico intrigado. Este fato marcaria toda a relação dos dois até a emigração do amigo rico, junto com o pai, para os Estados Unidos. Uma dessas habilidades era a de "caçar" pipas, ou "escorar papagaios" como falamos no Maranhão, que o amigo pobre tinha e o rico não conseguia ter.

Somente desconhece a magia de "escorar papagaio" quem não foi garoto em São Luís e não correu de cara para cima com vara na mão, observando aqueles que eram "cortados" em "lanceadas" que aconteciam nos céus daquela terra, nos meses de julho e agosto, principalmente. Mas esta não se constitui na única emoção associada à brincadeira. Outra é a confecção daquelas obras de arte, a partir de três varetas (que chamávamos de “talas”) de "taboca" (bambu), sendo uma central, e duas que constituem a envergadura, que deve ter pelo menos o tamanho da vareta central, para dar maior estabilidade, possibilitar um melhor controle por quem "empina o papagaio" e, claro, para dar-lhe mais elegância, magia e beleza no ar.

A cobertura em papel de “seda” de várias cores estimulava o exercício criativo da imaginação: faziam-se papagaios "de borboleta", "de compasso", "de olhos" ... A linha utilizada era da marca "espingarda" e tanto podia ser "linha 30" como a "linha 10", que era mais resistente. O "rabo do papagaio" tinha que ser de algodão, de preferência colorido. No final dos anos 1960 e no inicio dos anos 1970 havia fábricas de tecelagem no Maranhão e, portanto, não era difícil encontrar plumas de algodões coloridos.

Rabos compridos e com espessura adequada, propiciavam condições para o “papagaio guinar" com graça nos céus maranhenses, dando um colorido especial naquela imensidão azul que ocorre no nosso Estado naqueles meses. A linha era devidamente "encerada" com "cerol" feito com cacos de vidros socados em diferentes tipos de pilões. A cola na linha era feita com goma de mandioca. Fazia-se um grude bastante fluido (ralo, como se dizia então) para facilitar a mistura com o vidro socado e coado em pano de tecedura fina, para o "cerol ficar fino". Depois era só colocar nas mãos aquela mistura, passar na linha, "empinar o papagaio" e fazer as "lanceadas". Fiz tudo isso nos céus do Caminho da Boiada, Coréia, Macaúba, Canto da Fabril, que era o meu circuito de garoto naquela terra.

A estória contada por Kaled Hosseini proporcionou-me fazer esta verdadeira viagem no tempo. Um Maranhão que era pobre, mas oferecia condições para garotos pobres sonharem. Empinar papagaio, jogar futebol pelos campinhos daquele e de outros circuitos, proporcionavam aos garotos a chance de prática de exercícios criativos que contribuíram para a construção de sonhos. Como eu, vários garotos tiveram sonhos que se estruturaram nos bancos do Liceu Maranhense.

A trama do "Caçador de Pipas" se desenvolve entre o inicio de 1970 e termina em 2001. Nesse lapso de tempo o Afeganistão teve invasão russa e viu a chegada do regime Talibã, que precipitaram a decadência de um país que não tem grandes riquezas naturais. Como conseqüência, em 2001 o Afeganistão tinha o pior IDH de todos os países relacionados pela ONU. Nos seus últimos relatórios, a ONU deixou de registrar o IDH daquele país de população infelicitada, em que aos garotos foi proibido “caçar pipas”.

No Maranhão, no período da estória do livro, não ocorreu invasão russa, não houve conflitos étnico-religiosos, e o Estado sempre possuiu algumas das melhores riquezas naturais dentre os Estados brasileiros. Aos garotos maranhenses não foi proibido “empinar e escorar papagaios”, no entanto, um pequeno grupo se auto-declarou dono do Estado e castrou os sonhos da maioria deles, para construir fortuna e agir como se o Maranhão fosse a sua propriedade, da forma que são as suas mansões. O resultado não poderia ser outro. O Maranhão atravessou o milênio com o pior IDH entre todos os Estados brasileiros.

(Publicação simultânea no jornal O Imparcial, de São Luís do Maranhão, 09.fev.2008)

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