sábado, 17 de julho de 2010

Celebridade e Barbárie

Há relação entre a fama tautológica e os crimes parapragmáticos?

Francisco Bosco


Publicado em 22 de junho de 2010 na Revista Cult

Conta-se que, na década de 1970, o famigerado assaltante Lúcio Flávio e seu bando invadiram uma churrascaria no Rio de Janeiro e, na hora do assalto, reconheceram um repórter que estava entre os comensais. Este, Luarlindo Ernesto, sorriu meio sem jeito para o bandido, a quem conhecia de reportagens policiais. O bandido imediatamente devolveu a ele os objetos pessoais que haviam sido levados pelos outros assaltantes. Cerca de 30 anos antes, um ladrão pulou o muro de um presídio e caiu dentro da casa de Dorival Caymmi (que era, portanto, vizinha à penitenciária); ao deparar com dona Stella, esposa de Dorival e dona da casa, o ladrão pediu a ela que o deixasse passar.

No começo de 2006, também no Rio de Janeiro, quatro homens armados invadiram a casa do cineasta Zelito Viana, no Cosme Velho, e reconheceram entre as vítimas seu filho, o ator Marcos Palmeira. Entretanto, em vez de devolverem-lhe os pertences, trataram-no com violência redobrada: deram-lhe uma coronhada no rosto e por pouco não o levaram como refém. Alguns anos antes, o craque de futebol Romário também foi assaltado no Rio e, ao ser reconhecido pelos bandidos, não obteve privilégios: foi tratado com rispidez e teve de entregar tudo. E nos últimos anos outros jogadores de futebol famosos tiveram familiares sequestrados, como ocorreu, em 2004, com a mãe de Robinho, que chegou a ficar um mês no cativeiro.

Essa mudança na relação entre os criminosos e suas vítimas famosas parece ter sido acompanhada de uma transformação da relação entre o crime e sua finalidade. De pelo menos uns 15 anos para cá, multiplicaram-se os crimes bárbaros, caracterizados por uma absurda desproporção entre os objetivos práticos e os meios empregados para atingi-los. Na verdade, o que chama atenção é justamente o fato de que nesses crimes a violência não é um meio, mas um fim em si, um excesso sem causa e consequência aparentes. Às vezes um roubo termina, sem necessidade, do ponto de vista objetivo, em terrível suplício para as vítimas. Os ladrões já efetuaram o assalto, obtiveram os bens, não foram reconhecidos – e mesmo assim torturam as vítimas e as assassinam com requintes de crueldade. Outras vezes acontece uma falha, os bandidos são, por exemplo, reconhecidos pelas vítimas, e então não apenas não se hesita em matá-las, nem se pensa na forma menos dolorosa de fazê-lo, mas se mata da maneira mais pavorosa possível, como a família queimada viva dentro do carro, na cidade de Bragança Paulista, em 2006; os três jovens de 17 anos perfurados com espetos de churrasco numa casa no litoral sul de São Paulo; e o inesquecível caso do menino João Hélio, arrastado do lado de fora de um carro roubado durante 7 quilômetros, por ter ficado preso pelo cinto de segurança. Os ladrões teriam perdido 2 segundos se permitissem que ele fosse solto. Não teria feito diferença da perspectiva da finalidade “prática” do crime. Por que, então, a crueldade?

Talvez haja uma ligação entre as duas transformações, isto é, aquela da relação entre criminosos e famosos, e essa entre o caráter pragmático do crime e a violência excessiva que ele desencadeia. Essa ligação pode dizer respeito às características da relação entre os mitos da nossa cultura midiática e a sociedade.

Famosos por tautologia

Como se sabe, nosso tempo inventou uma espécie muito particular de celebridade: os famosos por tautologia. Antigamente, um imperador tornava-se célebre por suas conquistas bélicas, expansionistas. Um chefe de Estado notabilizava-se por sua astúcia política, por sua capacidade de liderança e presença de espírito. Um poeta era amado por revelar a sensibilidade de seu tempo e oferecer novas formas de subjetivação, outras possibilidades de viver. Hoje, o traço definidor das celebridades de nossa sociedade do espetáculo é a fama vazia, que resulta de um mero processo de repetição, ad nauseam, da própria imagem. A imagem da celebridade reproduz-se tantas vezes na mídia que ela acaba se tornando célebre. Ela é célebre porque é vista repetidamente. Daí a tautologia: é famoso porque é famoso.

A diferença é que, enquanto um estadista, um filósofo ou um artista prestam contribuições à sociedade, as celebridades contemporâneas geralmente nada oferecem aos outros. Pensar saídas econômicas para a melhor administração da sociedade, intervir no espaço urbano criando edificações privadas ou espaços públicos de lazer, propor formas experimentais de vida – isso fazem economistas, arquitetos, filósofos, e essa é sua contribuição para a melhoria da vida de todos. Mas o que oferece às pessoas a maioria das celebridades midiáticas de hoje? Nada? Não, pior: oferecem seu gozo a uma testemunha masoquista, humilhada, e em nada ajudam as pessoas a desenvolver suas potências, criar um quadro de valores com alguma autonomia, tornar-se críticas, arriscar formas de vida experimentais, crescer, brilhar, emancipar-se.

Essas celebridades são sobretudo parasitárias: vivem do desejo do outro, que lhes sustenta o narcisismo. Mas aquilo que o outro neles deseja é para muitos inalcançável: uma aparência perfeita, visibilidade, riqueza – e é isso que torna essa relação masoquista, fundada numa permanente defasagem de si em relação ao outro admirado. O fato de o espetáculo criar formas supostamente democráticas de acesso à celebridade, como o programa Big Brother Brasil, da Rede Globo, revela-se apenas uma estratégia de manutenção de uma perniciosa inversão de princípios. Pois não é a fama que deve ser democrática, e sim a contribuição pela qual alguém se torna famoso. Quando a celebridade é democratizada é porque ela atingiu um estado de absoluta gratuidade, o que significa que ela não pode trazer nenhum benefício à sociedade, portanto não pode ser democrática.

E enquanto os astros de telenovelas ostentam seus privilégios nas revistas de fofoca e nos programas de auditório, milhares de pessoas são cotidianamente humilhadas em nome, precisamente, do que faz com que os famosos sejam famosos. Pois, na sociedade do espetáculo, a confusão entre consumir, ser visto e existir faz com que quem não tem dinheiro e não é exposto na mídia não obtenha reconhecimento social. A exclusão hoje não é apenas econômica, mas acirrada por uma distribuição da economia narcísica tão injusta quanto a financeira (uns são vistos, outros não) e agravada ainda por um individualismo exacerbado e o esvaziamento das instituições culturais que dão coesão e fortalecem o reconhecimento mútuo.

Barbárie em cadeia

É assim que a admiração pelas celebridades está sempre a um passo de se tornar ódio mortal. “Por que eu deveria amá-lo se a sua fama só serve a ele e ainda me humilha?” Terá sido mais ou menos isso o que passou pela cabeça dos ladrões na hora em que reconheceram o ator Marcos Palmeira durante o assalto à casa de seu pai? Nesse caso, importa pouco que a celebridade em questão não seja uma pessoa arrogante, tenha um projeto ligado à produção de alimentos orgânicos etc. Marcos Palmeira não parece ser aquele tipo definido por Fernando Pessoa quando este diz que “é preciso ser muito grosseiro para se estar à vontade no sucesso”. Mas, para o humilhado, ele representa naquele momento o humilhador.
A transformação do caráter pragmático do crime em excesso de violência não é um fenômeno gratuito. Ela revela a profundidade do ódio daqueles que sofrem preconceito racial, levam porrada da polícia, não recebem escolaridade decente, em suma, não são contemplados pelo pacto social – e, portanto, por que deveriam permanecer-lhe fiéis? É a manifestação súbita da barbárie por parte de sujeitos que sofrem um processo gradual de barbárie por longos anos. E esse processo cotidiano de humilhação inclui a relação masoquista com os mitos da cultura midiática. A passagem do crime pragmático ao crime excessivo é, ela mesma, a um tempo excessiva e pragmática, irracional e finalista: por um lado é uma explosão espetacular de vingança, e por outro uma forma trágica de interromper provisoriamente o circuito social perverso em que o crime sem sangue é apenas um acidente previsto no funcionamento do processo excludente.

Nenhum comentário:

Postar um comentário