sábado, 15 de novembro de 2008

Não desperdiçar as oportunidades da crise

Leonardo Boff
Teólogo

Face ao cataclismo econômico-financeiro mundial se desenham dois cenários:
um de crise e outro de tragédia. Tragédia seria se toda a arquitetura
econômica mundial desabasse e nos empurasse para um caos total com milhões
de vítimas por violência, fome e guerra. Não seria impossível, pois o
capitalismo, geralmente, supera as situações caóticas mediante a guerra.
Ganha ao destruir e ganha ao reconstruir. Somente que hoje esta solução não
parece viável pois uma guerra tecnológica liquidaria com a espécie humana;
só cabem guerras regionais sem uso de armas de destruição em massa.

Outro cenário seria de crise. Para ela, não acaba o mundo econômico, mas
este tipo de mundo, o neoliberal. O caos pode ser criativo, dando origem a
outra ordem diferente e melhor. A crise teria, portanto, uma função
purificadora, abrindo espaço para uma outra oportunidade de produção e de
consumo.

Não precisamos recorrer ao idiograma chinês de crise para saber de sua
significação como risco e oportunidade. Basta recordar o sânscrito matriz
das línguas ocidentais.

Em sânscrito, crise vem de kir ou kri que significa purificar e limpar. De
kri vem também crítica que é um processo pelo qual nos damos conta dos
pressupostos, dos contextos, do alcance e dos limites seja do pensamento,
seja de qualquer fenômeno. De kri se deriva outrossim crisol, elemento
químico com o qual se limpa ouro das gangas e, por fim, acrisolar que quer
dizer depurar e decantar. Então, a crise representa a oportunidade de um
processo critico, de depuração do cerne: só o verdadeiro fica, o acidental
cai sem sustentabilidade.

Ao redor e a partir deste cerne se constrói uma outra ordem que representa
a superação da crise. Os ciclos de crise do capitalismo são notórios. Como
nunca se fazem cortes estruturais que inaugurem uma nova ordem econômica, mas
sempre se recorre a ajustes que preservam a lógica exploradora de base, ele
nunca supera propriamente a crise. Alivia seus efeitos danosos, revitaliza a
produção para novamente entrar em crise e assim prolongar o recorrente ciclo
de crises.

A atual crise poderia ser uma grande oportunidade para a invenção de um
outro paradigma de produção e de consumo. Mais que regulações novas,
fazem-se urgentes alternativas. A solução da crise econômica-financeira
passa pelo encaminhamento da crise ecológica geral e do aquecimento global.
Se estas variáveis não forem consideradas, as soluções econômicas, dentro de
pouco tempo, não terão sustentabilidade e a crise voltará com mais
virulência.

As empresas nas bolsas de Londres e de Wall Street tiveram perdas de mais de
um trilhão e meio de dólares, perdas do capital humano. Enquanto isso,
segundo dados do Greenpeace, o capital natural tem perdas anuais da ordem de
2 a 4 trilhões de dólares, provocadas pela degradação geral dos
ecossistemas, desflorestamento, desertificação e escassez de água. A
primeira produziu pânico, a segunda sequer foi notada. Mas desta vez não dá
para continuar com o business usual.

O pior que nos pode acontecer é não aproveitar a oportunidade advinda da
crise generalizada do tipo de economia neoliberal para projetar uma
alternativa de produção que combine a preservação do capital natural com o
capital humano. Há que se passar de um paradigma de produção industrial
devastador para um de sustentação de toda a vida.

Esta alternativa é imprescindível, como o mostrou corajosamene François
Houtart, sociólgo belga e grande amigo do Brasil, numa conferência diante da
Assembleia da ONU em 30 de outubro do corrrente ano: se não buscarmos uma
alternativa ao atual paradigma econômico em quinze anos 20% a 30% das
espécies vivas poderão desaparecer e nos meados do século haverá cerca de
150 a 200 milhões de refugiados climáticos. Agora a crise em vez de
oportunidade vira risco aterrador.

A crise atual nos oferece a oportunidade, talvez uma das últimas, para
encontrarmos um modo de vida sustentável para os humanos e para toda a
comunidade de vida. Sem isso poderemos ir ao encontro da escuridão.

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