José Lemos*
Para este sábado, 10 de março, havia dois temas que eu
queria discorrer. Um deles se refere à tragédia que aconteceu no Nordeste do
Japão no ano passado, exatamente neste dia. O tsunami, que devastou uma cidade
inteira, deixou milhares de pessoas sem abrigo, ceifou vidas humanas, de
animais e de plantas. Um acidente que
afetou um complexo de usinas nucleares, e que poderia
ter implicações imprevisíveis. Felizmente a vida já está voltando à normalidade
naquele local. Haverá muitas avaliações daquele triste evento que serão feitas
por gente bem mais qualificada.
Havia também planejado escrever acerca de algumas
idéias que reuni, todas elas sacadas dos resultados do trabalho que estou
fazendo na atualização do meu livro. Queria falar de evidências que suscitaram
a tentação de oferecer sugestões. Sim, porque não adianta apenas fazer
diagnósticos. Precisamos ter propostas, ainda que equivocadas. Contudo, na
terça-feira, dia seis de março, aconteceu um fato que me abalou profundamente.
Embora não tivesse sido um tsunami nas nossas vidas, porque já esperávamos
aquele desfecho.
Um grande amigo nosso se foi, e nos deixou um rastro de
sofrimentos e de saudades. Assim, eu peço a permissão aos Editores do Jornal e também
para aqueles que me dão o prazer de ler os meus artigos, para discorrer acerca deste
fato. Fica a promessa de escrever o texto sobre São Luis no próximo sábado. Uma
das mais belas criações do Milton Nascimento chama-se “Canção da América” onde
ele diz: “Amigo é coisa prá se guardar / debaixo de sete chaves / Dentro do
coração / .... mas quem cantava chorou / Ao ver o seu amigo partir....”
Renato Teixeira também nos brinda com a poesia cantada
de Amizade Sincera”. “Os verdadeiros amigos / Do peito e de fé / Os melhores
amigos... Sabem entender o silencio / E manter a presença mesmo quando ausentes
/ Por isso, mesmo apesar de tão raros / Não há nada melhor do que um grande
amigo”.
“Percebe”, um cachorro valente, era assim. Um grande
amigo nos últimos dezesseis anos. O apanhamos com alguns dias de vida e muito
debilitado. Trouxemos para casa, para que morresse dignamente. Em vez disso,
ele conseguiu sobreviver, e se recuperou bem. Providenciamos todas as vacinas,
e ele cresceu saudável.
Desenvolveu uma capacidade reprodutiva, volúpia e
vigor, que me levaram a providenciar levá-lo para fazer vasectomia. Sempre
achei uma violência castrar animais. Até acho que quem inventou castração de
bicho deveria experimentar primeiro em si. Ele cresceu, e se transformou num
belo e vigoroso cão de guarda. Daqueles que não deixam ninguém se aproximar dos
seus donos e da casa de que tomava de conta.
Tudo ia bem, até que ao final do ano passado
descobrimos que ele estava com câncer. Câncer na região pubiana que,
provavelmente, começou na sua próstata. Tivemos que providenciar cirurgia para
retirar-lhe os testículos. Isso lhe deu sobrevida. Mas a doença já estava em
metástase. Espraiou-se pelo seu dorso inferior. Dava dó ver aquele cão, outrora
tão valente, naquele estado decadente.
O Veterinário que cuidava dele chegou a
sugerir que o “sacrificássemos” para poupar-nos, e a ele, de sofrimentos. Achamos
que ele não merecia aquilo. Ficou um tempo tomando remédios para reduzir-lhes
as dores intensas que sentia e que nos matava junto com ele.
Na segunda-feira à noite eu cheguei da Faculdade,
depois de dar as minhas duas aulas, como faço naquele dia. Ele estava deitado.
Olhou-me com um olhar sofrido. Sacudiu o rabo prá mim. Roberto Carlos diz na
sua bela música que “Meu cachorro me sorriu latindo”. O meu me sorria,
sacudindo o rabo e vindo pra cima de mim para eu beijar-lhe no pescoço. Fiquei
um pouco com ele, mas não resisti e fui me deitar.
Na manhã da terça-feira ele estava mais debilitado e
deitado na garagem, exatamente na rota de saída do carro. Afastei-o com cuidado
para eu poder sair. Depois do café da manhã, vim trabalhar no escritório da
nossa casa, que fica na parte superior e tem 14 degraus. Ele conseguiu subir se
arrastando. Chegou até os meus pés e ficou ali, como sempre fazia. Eu continuei
trabalhando. Senti que ele, repentinamente, virou pra mim e lançou-me um olhar
triste. Continuei trabalhando.
Aproximadamente meia hora depois me voltei para ele.
Havia morrido. Estava com os olhos abertos, sem mais o brilho da vida, na minha
direção. Desabei em pranto. Não tive mais condições de trabalhar naquela
terça-feira. Fui dar aula à noite com muita dificuldade. O consolo que eu tenho
é a certeza de que “Qualquer dia, amigo, eu volto / A te encontrar / Qualquer
dia, amigo, a gente vai se encontrar”. Ai eu vou te colocar a coleira no
pescoço e sairemos correndo, onde estivermos, como fizemos tantas vezes nas
tardes de domingo aqui na Terra.
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*Professor Associado na Universidade Federal do Ceará.
Escreve aos sábados para “O Imparcial”, jornal de São Luís (MA).
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